Selecionamos um trecho da entrevista feita pelo grande Pedro Alexandre Sanches, um dos maiores jornalistas e pesquisadores da música brasileira, em fevereiro desse ano, quando “Samborium” chegou às plataformas digitais. O vinil, o Estúdio Caixa de Som orgulhosamente lança em breve.

 

Jazz, bossa e funk no sambório de Dom Salvador

Por Pedro Alexandre Sanches

Um dos criadores do som que se convencionou chamar de samba-jazz, o pianista Dom Salvador, paulista nascido em Rio Claro há 84 anos, está em atividade na música desde 1961. Pelos últimos 50 anos dessa estrada, desde 1973, Salvador da Silva Filho tem vivido no Brooklyn, em Nova York, onde alterna concertos em sexteto e gravações eventuais (como a de Samborium, editado em novembro passado pelo Dom Salvador Trio, completado pelos músicos brasileiros radicados nos Estados Unidos Gili Lopes, no contrabaixo, e Graciliano Zambonin, na bateria) com a atividade relativamente modesta como pianista de fundo no restaurante The River Café, instalado há 45 anos à beira-rio, junto à ponte que liga o Brooklyn a Manhattan. “Abriram em 1977, e estou lá desde o primeiro dia”, orgulha-se Dom Salvador em entrevista por vídeo, contando que, em consequência da pandemia, seu trabalho diário foi reduzido a “apenas” cinco noites por semana.

Luta e modéstia à parte, o artista fez história em seus 39 anos de Brasil, no samba-jazz e fora dele. Cedo, participou de um grupo de baile formado apenas por músicos negros, chamado Oliveira e Seus Black Boys, e foi pioneiro na febre de trios musicais que modelaram o samba-jazz para além dos limites quase exclusivamente brancos da bossa nova da zona sul carioca. Integrou o Copa Trio, do baterista carioca Dom Um Romão, que definiu o som do histórico Beco das Garrafas, em Copacabana, acompanhando artistas iniciantes como Jorge Ben (Jor), que em 1963 deu ao samba-jazz o nome de Samba Esquema Novo, e Elis Regina. Na primeira apresentação da cantora gaúcha no Beco, em 1964, o acompanhamento era do Copa Trio, com Dom Salvador ao piano. A seguir, ele compôs o Rio 65 Trio, com Edison Machado, na bateria, e Sérgio Barrozo, no contrabaixo.

Anos 1960 adiante, quando os Estados Unidos mergulhavam no “black is beautiful” e traduziam a nova consciência racial musicalmente em soul e funk, o produtor Helcio Milito, egresso do trio fundamental da bossa e do samba-jazz, Tamba Trio, cunhou a alcunha “Dom” e instou Salvador a formular sua própria noção de black power, que culminou na formação de uma nova sonoridade, sucessivamente apelidada sambalanço, samba-funk, samba-soul, samba-rock etc. Salvador iria além do samba na fusão, gravando baiões do pernambucano Luiz Gonzaga (“Asa Branca“, em 1969, e “Juazeiro“, em 1970) e outros gêneros de raiz brasileira em black power. A corrente black hippie ganhava expressão brasileira com “Tio Macrô“, do primeiro disco solo, Dom Salvador (1969). Foi também nesse contexto que o músico paulista gravou o piano de “Jesus Cristo“, hino gospel que o capixaba Roberto Carlos lançou em 1970, quando se aproximava transitoriamente da sonoridade black power.

Nascia, nessa conversão, a big band Dom Salvador e Abolição, formada por nove músicos negros e originada no levante racial do 5º Festival Internacional da Canção da Rede Globo, em 1970. O pianista classificou na quinta posição uma composição loquazmente denominada “Abolição 1860-1980”. Nessa etapa, Dom Salvador chegou a se aventurar como compositor de música popular, transitando do samba-jazz instrumental para canções gravadas por Taiguara (“O Vencedor”, 1969), Claudia (“Moeda, Reza e Cor“, 1971), João Só (“Quem Sabe o Amanhã“, 1971), Renata Lu (“Sambaloo“, 1971) e a dupla Dora e Walter (“Unificação“, 1972, “Passo a Passo“, 1973). Vindo de temporada nos Estados Unidos e inspirado pelos Panteras NegrasToni Tornadovencedor do 5º FIC com o baladão soul “BR-3”, gravou uma versão explosiva de seu épico “Uma Vida“, também um dos carros-chefes do único LP de Dom Salvador e Abolição, Som, Sangue e Raça (1971).

Partindo da Abolição, o saxofonista Oberdan Magalhães conduziria parte dos companheiros de grupo para a formação, na segunda metade daquela década, da Banda Black Rio, o produto mais incendiário da movimentação suburbana de bailes afrocentrados (e libertos dos limites do samba), até hoje lembrada como black Rio. No mercado estadunidense, o músico paulista fez os arranjos para o LP Turn the World Around (1977), do ídolo pop estadunidense-jamaicano Harry Belafonte, e gravou com artistas de jazz como Robin Kenyatta (Nomusa, 1975), Paul Horn (em Altura do Sol – High Sun, 1976), Lloyd McNeill (Treasures, 1976), Charlie Rouse (Cinnamon Flower, 1977), Herbie Mann (Sunbelt, 1978).

Na entrevista abaixo, Dom Salvador fala sobre samba-jazz, samba-funk e Samborium, batizado a partir da regravação da fundadora “Sambório“, que ele compôs e gravou em 1966, em seu segundo álbum instrumental sob a denominação Salvador Trio, completado por Edson Lobo, no contrabaixo, e Victor Manga, na bateria.

(..)

PAS: O disco mais recente, Samborium, ainda é um trabalho de samba-jazz, ou é só jazz mesmo?

Dom Salvador: Não, é samba-jazz. Fiquei muito feliz com esse disco, porque consegui dois músicos maravilhosos. O grupo surgiu durante a pandemia, conheci esses dois músicos aqui em Nova York, ficávamos batendo papo por telefone. Como estava todo mundo sem trabalhar, eles vinham para minha casa e a gente ficava tocando, fazendo jam session, e surgiu a ideia de fazer um disco.

PAS: “Sambório” é uma música lá do início, não?

DS: Essa música eu gravei num disco do Salvador Trio. O nome da música é “Sambório” (1966), mas para o nome do disco botei Samborium.

PAS: O que seria um sambório?

DS: Antigamente a gente falava: vamos tocar um sambinha, um jazzinho. Fiz a música, um samba, um sambório, gostei do título. Sambório não significa nada (ri).

PAS: O álbum Samborium foi motivado pela pandemia?

DS: Exatamente. Quando você ouve o disco, parece que estamos tocando juntos há muitos anos. É uma jogada diferente, bem diferente do que fiz no passado.

PAS: No River Café o senhor toca com o trio também?

DS: Não, é só piano. Faço background, atmosfera. Toco músicas bem easy listening. Trabalho cinco noites por semana, de quarta a domingo. Antigamente eu trabalhava de segunda a segunda, mas por causa da pandemia não conseguiram mais, agora fecham segunda e terça. Eram sete dias, tinha brunch no domingo, também não tem mais. Muita gente que trabalhava lá foi embora para outros estados na pandemia, porque o aluguel estava difícil.

Leia a entrevista completa no blog Farofafá: https://farofafa.com.br/2023/02/17/jazz-bossa-e-funk-no-samborio-de-dom-salvador/